Até o momento, a Amazon é a única gigante varejista do mercado que realiza a venda de livros no modelo 1P (First Party) – operação em que ocorre a compra direta com o fornecedor e venda para o consumidor final. Em janeiro, o Mercado Livre anunciou que pretende iniciar a venda de livros por meio de loja própria, em que venda e entrega serão realizadas pela empresa de comércio eletrônico, indo além do formato marketplace no qual já opera. A Associação Nacional de Livrarias (ANL) criticou a estratégia, denunciando as consequências da atuação da empresa norte-americana no setor.
Em nota ao PublishNews em fevereiro deste ano, a ANL destacou a prática predatória de descontos abusivos praticada pela concorrente do Mercado Livre: “A Amazon também utiliza o livro como isca, vendendo com prejuízo e pressionando editoras e livrarias. Isso contribuiu com a falência da Saraiva, o fechamento de lojas da Livraria Cultura e a saída da Fnac do Brasil, entre outras”. Como exemplo do impacto da gigante do e-commerce no setor livreiro, a nota relembra a falência da segunda maior rede de livrarias dos Estados Unidos, Borders, em 2011.
Mercado digital
O fundador das casas editoriais independentes Moinhos e Moby Dick, Nathan Magalhães, acredita ser improvável, no futuro, uma competição direta entre as duas empresas do setor varejista, já que a Amazon tem um espaço consolidado. “A empresa está praticamente em primeiro lugar como marca mais lembrada, talvez o Mercado Livre possa superar em termos logísticos com prazos de entrega reduzidos”, analisa.
A Moinhos possui mais de 160 autores publicados, destes, 88 são brasileiros. Nathan avalia que, financeiramente, vender na Amazon é considerado seguro para as editoras pequenas e independentes, pois, após 90 dias, a depender do contrato, a editora recebe o valor do produto, diferentemente do modelo de consignação praticado por livrarias. Para receber neste prazo, a editora oferece 50% de desconto para a varejista, caso possa receber em 75 dias, o desconto sobe para 55%. O editor acrescenta que a queda no prazo “não é uma benesse, é uma condição”, e ressalta: apesar da segurança da negociação, os preços praticados pela Amazon – descontos que deixam o valor final abaixo do preço de custo – deturpam o custo real do livro. Por isso, muitos leitores veem “as editoras como mercenárias”, porque o preço encontrado na Amazon não pode ser replicado em livrarias físicas, por exemplo.
Além de aceitar os descontos expressivos, para estar presente na plataforma da Amazon as editoras precisam seguir rígidas políticas comerciais. Lucas de Lucca, fundador da Flyve, conta que recebeu um e-mail da Amazon, no primeiro trimestre deste ano, sobre o prazo de postagens dos livros – antes a empresa tinha dois dias para gerar e enviar o código de rastreio para os clientes – que passou a ser de 24 horas. Segundo o editor, a Flyve já atuava com esse prazo, pois possui mais de dez funcionários, mas, em outras editoras independentes, que atuam com equipes enxutas, a mudança força uma alteração brusca na logística. . “Quanto menor você for, mais você vai ter dificuldade de fazer o marketplace feliz. E o marketplace é cruel. Um autor independente que tem um trabalho CLT, ele vai conseguir postar isso no correio, sabe-se lá quando. Então se torna punitivo”, exemplifica.
Apesar das críticas à política predatória da big tech, Lucas acredita que a Amazon permite uma disputa de “igual para igual” entre editoras de todos os portes na plataforma. Na prática, porém, isso não é tão simples. Para equilibrar a concorrência, as pequenas casas editoriais precisam investir em divulgação e publicidade dentro da própria Amazon, garantindo que seus livros cheguem com mais facilidade aos leitores. Ao abrir o site da empresa, best-sellers e outros livros – lançamentos ou não – de editoras já renomadas são os primeiros a aparecerem e a serem divulgados na página inicial, exatamente por conta da publicidade paga e de já serem consagradas na plataforma.
Pode existir bibliodiversidade – diversidade de gêneros, autores, linguagens, estéticas e histórias – dentro da gigante do varejo online, contudo o alcance dessa diversidade e sua manutenção estão comprometidos por conta do monopólio, argumenta Nathan, editor da Moinhos e da Moby Dick. A Claraboia, que publicava apenas escritoras mulheres, anunciou, em 3 de fevereiro deste ano, o encerramento de suas atividades, sem especificar o motivo exato, por meio de uma nota no Instagram em que a fundadora, Tainã Bispo, assegura: “[…] a editora nunca foi rentável e o pouco que eu tinha para investir tinha acabado”. A editora também ofertava seus livros por meio da plataforma Amazon.
Para Nathan, “quando uma editora fecha, principalmente essas que não são comerciais, a gente perde em bibliodiversidade. Muito da participação das discussões [temas dos livros] foram propostas por pensadoras e pensadores que foram publicadas inicialmente por editoras pequenas. E aí as comerciais viram que vendia e investiram também”. Um exemplo é o O Peso do Pássaro Morto, de Aline Bei. O romance foi publicado pela editora independente Nós e, com o sucesso da obra, a Companhia das Letras lançou o segundo livro da autora, Pequena Coreografia do Adeus, finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura 2022.
A promessa da democratização de acesso à literatura e o argumento da falta de livrarias em cidades pequenas são questões ressaltadas pela fundadora das editoras Jaguatirica e Gato Bravo, Paula Cajaty, para valorizar a atuação da Amazon, já que a logística das gigantes varejistas funciona. A casa editorial Jaguatirica tem mais de 80% de suas vendas realizadas pela empresa. Paula, ao contrário de outros editores, defende a big tech. “Graças a Deus, existe a Amazon. Ela tem uma política clara e você recebe aquele valor, não tem perigo”.
O dilema do preço fixo
Paula também é contrária à Lei Cortez, ou Projeto de Lei 49/2015, proposta pela então senadora Fátima Bezerra (PT-RN). O PL prevê que, nos primeiros 12 meses após o lançamento de um livro, as livrarias (físicas ou virtuais) não podem oferecer descontos superiores a 10% sobre o preço de capa. A fundadora da Jaguatirica adota uma posição oposta, inclusive à da Liga Brasileira de Editoras, que vê a medida “ “como um gesto de reverência à bibliodiversidade, o que pressupõe a luta pela sobrevivência dos diferentes suportes e tecnologias de leitura, tanto quanto dos profissionais e dos leitores que participam da cadeia do livro e da cultura escrita, de modo mais abrangente”.
De acordo com Paula, a Lei Lang – em vigor na França desde 1981 – que serviu de base para a criação da Lei Cortez, “impõe penalidades e multas pesadas para editores que a descumprem, e é presumido que os editores a estão infringindo se um parceiro de revendedor der desconto”. No entanto, no Brasil, ainda não há clareza de como funcionaria essa divisão de penalidades e se haveria essa distinção entre editora e revendedor.
Nathan e Lucas afirmaram serem favoráveis à aprovação da lei no Brasil. “A partir do momento que o livro vai ter 10% de desconto, tanto faz você comprar na Amazon quanto você comprar na livraria, quanto você comprar no meu site. Então, para a gente e para a livraria, é melhor. Para a Amazon, não”, explica o editor da Moinhos. O projeto foi aprovado em turno suplementar na Comissão de Educação do Senado, em outubro de 2024, e segue em tramitação.
Enquanto o Projeto de Lei 49/2015 segue em tramitação, empresas como a Amazon continuam a impor suas próprias regras, realidade que pode se repetir com o avanço do Mercado Livre no modelo 1P. O risco que o mercado editorial corre ao concretizar a promessa da empresa é de mais uma gigante do varejo ter poder suficiente para impor dinâmicas de preços e afetar a sobrevivência da bibliodiversidade.